Prefácio

Bryant Garth é Distinguished Professor Emérito e Reitor Interino da University California-Irvine School of Law, onde permanece desde 2012. Seus estudos se concentram no estudo das profissões jurídicas, sociologia do direito, globalização e educação jurídica. Bryant iniciou sua carreira trabalhando com Mauro Cappelletti, no Projeto Florença de Acesso à Justiça, que resultou na publicação de importante obra, em cinco volumes (1977-79). Seus três principais livros sobre direito e globalização, em co-autoria com Yves Dezalay e publicados pela University of Chicago Press, são “Dealing in Virtue” (1996), “The Internationalalization of Palace Wars” (2002) e “Asian Legal Revivals” (2010). O livro atual, do qual ele é coautor novamente com Yves Dezalay, se intitula “Law as Reproduction and Revolution: An Interconnected History” e será publicado em breve pela University of California Press. Ele foi Reitor da Indiana University School of Law-Bloomington e na Southwestern Law School, além de Diretor da American Bar Foundation. Ele atuou como co-editor do Journal of Legal Education entre 2011-14. Bryant também integra Comitê Executivo de Coordenação do projeto “After the J.D.”, o primeiro estudo longitudinal das profissões jurídicas nos EUA, e o Conselho da Fundação NALP; além disso, ele preside o “Advisory Committee of the Law School Survey of Student Engagement”.

Sinto-me honrado que o CONDEGE, o CNCG e a DPU tenham me solicitado a redação do prefácio para o livro no qual são analisados os resultados da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública. Esta notável pesquisa é o produto da recíproca relação que há entre o atual movimento do Acesso à Justiça e a Defensoria Pública. Quando trabalhei há muitos anos com Mauro Cappelletti, no Projeto Florença de Acesso à Justiça, a ideia de três ondas renovatórias do acesso à justiça foi interpretada por alguns como significando que o foco na resolução alternativa de conflitos seria “mais avançado” do que propiciar a representação em juízo para tutela de direitos individuais ou de interesses coletivos e difusos. Nosso ponto de vista, efetivamente, era de que a terceira onda envolveria a descoberta acerca do que funciona, individualmente ou em combinação, para tornar os direitos efetivos, incluindo, é claro, um importante papel a ser cumprido pelos serviços de assistência jurídica. Apesar de todas as inovações tecnológicas, mecanismos de self-help, além de outros recursos e facilidades on line, o papel de devotados serviços de assistência jurídica na promoção do acesso à justiça ainda é indispensável. A Defensoria Pública brasileira, que foi central para a reforma constitucional democrática de 1988, tornou-se uma das instituições mais proeminentes no mundo associadas com o acesso à justiça.

É instrutivo que o recente e importante “Global Access to Justice Project”, que trata dos questionamentos centrais do Projeto de Florença, porém expandindo e atualizando as questões sobre como as pessoas comuns e, especialmente, os menos favorecidos, podem melhorar suas vidas reivindicando direitos e utilizando–se dos remédios legais, seja liderado por Diogo Esteves, Cleber Alves (dois membros proeminentes da Defensoria Pública), Alan Paterson, Earl Johnson Jr. e por mim. O acesso à justiça, hoje, também enfrenta um contexto global diferente e mais difícil do que nas décadas de 1970 e 1980, com o vertiginoso aumento da desigualdade nos últimos 30 anos. A Pesquisa Nacional da Defensoria Pública, além de parte do “Global Access to Justice Project” em andamento, é também um reflexo do papel de liderança da Defensoria Pública em conduzir novas pesquisas, fazer perguntas difíceis e servir a grupos e indivíduos desfavorecidos e marginalizados.

Esta é a maior pesquisa empírica sobre acesso à justiça já realizada no Brasil e, surpreendentemente, foi conduzida nas circunstâncias dramáticas da pandemia de COVID-19 no Brasil, que dificultou a pesquisa e afetou diretamente alguns daqueles que desempenharam papéis centrais no desenvolvimento e coordenação do estudo. A pesquisa fornece material histórico para situar a Defensoria Pública na história brasileira e na estrutura política e jurídica de hoje. O estudo mostra exatamente onde os membros da Defensoria Pública atuam, quantos eles são e qual tem sido seu desempenho funcional. A pesquisa é extremamente completa e criteriosa.

Neste breve prefácio, farei algumas observações sobre o que a pesquisa revela. Destaco duas descobertas surpreendentes e tenho certeza de que há outras. Cito o estudo: “A análise da série histórica revela gradativo incremento da atuação coletiva da Defensoria Pública, tendo havido em crescimento de 714,7% entre os anos 2018 e 2022”. É interessante notar que, sob as circunstâncias de pressão da pandemia, que tornaram as pessoas em isolamento social menos propensas a procurar por serviços jurídicos, a atuação coletiva da Defensoria Pública aumentou: “o número de ações coletivas continuou em crescimento, indicando o fortalecimento da proteção dos direitos transindividuais da população vulnerável do país.” É uma questão interessante saber se isso é uma tendência ou resultado da pandemia. Frequentemente, os prestadores de assistência jurídica acabam sobrecarregados demais com os casos individuais para realizarem o trabalho nas ações coletivas.

Também fiquei impressionado com outra área onde há um forte aumento da atuação funcional na era COVID-19. Embora menos da metade das “Defensorias Públicas possuam Call Center regularmente instalado, representado 46,4% do total”, o número de chamadas passou de 2,2 milhões em 2018 para 3,3 milhões em 2020. Novamente, será interessante observar se há uma tendência contínua ou um produto da pandemia, e se ela traz novas pessoas para o sistema ou se substitui a procura por serviços individualmente.

Existem também descobertas menos surpreendentes, mas muito importantes, relevantes para o acesso à justiça no Brasil. Pela primeira vez na história, sabemos agora o número e o percentual da população brasileira com potencial de acesso à assistência jurídica fornecida pela Instituição. Atualmente, no âmbito da justiça estadual, 48.677.446 habitantes não possuem acesso à assistência jurídica fornecida pela Defensoria Pública. A necessidade é evidente: 44.446.368 do total são habitantes economicamente vulneráveis com renda de até três salários mínimos, o que significa, de forma realista, que não possuem condições de contratar advogado particular para defender seus direitos. Em síntese, cerca de 24% da população brasileira está potencialmente à margem do sistema de justiça e impedida de reivindicar seus próprios direitos por intermédio da Defensoria Pública.

A pesquisa também aborda um tópico que é relativamente novo na literatura sobre acesso à justiça. Em termos de legitimidade do sistema de justiça, sabemos que existe uma preocupação entre as minorias em particular de que elas deveriam ser defendidas, julgadas e orientadas por pessoas que sejam semelhantes a elas e, também, que tenham origens em classes sociais similares, facilitando a empatia com aqueles que são julgados, defendidos ou orientados. Essa aspiração está longe de ser uma realidade em qualquer país por mim estudado. Esta pesquisa, singular entre outras desse tipo, faz perguntas relevantes para essas questões. De acordo com os dados levantados no estudo, 27,5% dos(as) Defensores(as) Públicos(as) provêm de famílias com renda de 10 a 20 salários mínimos e 26,4% advêm de famílias com renda acima de 20 salários mínimos. Esses resultados mostram que os relativamente mais privilegiados possuem muito mais propensão para se tornarem Defensores Públicos, mas pelo menos há alguma diversidade. O mesmo padrão foi encontrado ao analisar cor / raça / etnia. Talvez ainda mais impressionante, 74% dos Defensores Públicos são brancos, enquanto a população brasileira é predominantemente composta por indivíduos pardos.

Essas constatações não desafiam os ideais e o compromisso da Defensoria Pública no Brasil, mas sugerem que há trabalho a ser feito para garantir acesso e valorizar significativamente a diversidade. Claro, isso não é uma surpresa, especialmente no contexto de crescente desigualdade social. Mas o primeiro passo para enfrentar os limites do acesso à Defensoria Pública e à diversidade da estrutura interna é proporcionar transparência para revelar os fatos/dados coletados, mesmo que eles nos desafiem. Esta pesquisa é um modelo do tipo de pesquisa que espero seja replicada em muitos outros países, incentivada pelo “Global Access to Justice Project” e pela liderança e exemplo da Defensoria Pública do Brasil.